Problemas e soluções - Entrevista a José Manuel Marques.

Esta reportagem foi integralmente retirada de uma revista Motociclismo dos anos 90. O texto é da responsabilidade de Pedro Azevedo e as fotos de Photo Course.

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Se alguém conhece bem a indústria nacional, esse alguém é José Maria Marques. Presidente da Associação Nacional dos Industriais de Bicicletas, Ciclomotores, Motociclos e Acessórios, é um individuo lúcido, que não fecha os olhos aos problemas de hoje: "Tem sido uma luta titânica face a toda esta conjuntura; fui e sou um lutador de mentalidades". Apesar de tudo, acredita que "temos hipótese de alcançar uma indústria saudável de motociclos da classe A1_; porque não? Na bicicleta a pedal, por exemplo, estamos optimamente; trabalha-se de dia e de noite para a bicicleta, nunca a Europa assistiu a uma implantação assim deste nosso produto"....

 

Quando fui falar com José Maria Marques, a pergunta era só uma: o que é que se passa: o que é que aconteceu para chegarmos à motorizada nacional actual? São geralmente antiquadas, sem design, perderam inclusivé o mercado nacional, outrora perfeitamente controlado pelos industriais de Águeda... As raras excepções a este quadro negro contam-se pelos dedos, mas também provam que é possível recuperar. Contudo são sempre ciclomotores: porque será que nunca entrámos decisivamente na produção de motociclos?

J.M.M. - "A Casal, para além do motor de 49,9cc também ensaiou o motor de 125cc e chegou mesmo a fazer a motocicleta adaptada a essa potência... Mas não há duvida de que, não só em Portugal como na Europa, relativamente poucos passam do ciclomotor para a motocicleta. A Europa ficou um bocadinho adormecida com o fabrico da motocicleta dividido entre os "gigantes" inglês e alemão, e os asiáticos (que fazem as suas prospecções antes de fazerem face aos seus projectos) concluem que - do ciclomotor- se estava a entrar numa era de velocidade! Passam a dedicar uma atenção maior à motocicleta, que preferem com mais velocidade e actualização.

Em Portugal contudo, temos que admitir que os motociclos não ficam ao alcance de uma franja considerável, muito substancial. É aí que, paralelamente com as motocicletas, nós vamos ainda tendo uma boa comercialização do ciclomotor. As empresas portuguesas absorveram o mercado português, e os seus ciclomotores deixavam então pouco espaço à entrada das motocicletas. O ciclomotor é hoje o veículo de todos os dias, e vende-se bem."

M.J - Contudo, assistimos hoje à invasão das scooters japonesas, que pouco espaço têm deixado...

J.M.M. - "O problema foi que a scooter, no passado, era sem dúvida um veículo desajustado, pesado. Hoje a ideia vingou: este tipo de acelera é agora entendido como mais ajustado aos jovens, até porque ele  "mata" menos que o ciclomotor. Aqui há uns anos, quando a Peugeot se associou com a Honda e passou a produzir a Vision, um veículo repleto de inovações com um motor Honda, conseguiu realmente produzir um veículo muito actual.

Em Portugal, essa scooter veio e ocupou desde logo uma posição que foi motivo de eu, como presidente da ABIMOTA, chamar de imediato a atenção dos produtores tradicionais de ciclomotores em Portugal, e dizer-lhes "aqui está uma coisa nova, que devem ter de contar para começarem a fazer face aos problemas associados"- e atenção, eu disse associados.

Entretanto, é o Japão com a Honda e a Yamaha; é a Itália que tenta dar uma resposta ao gigante asiático com a Malagutti e a Piaggio....

Todos começam a acordar para a coisa, e Portugal adormece! A scooter merece uma tal preferência que começa a marginalizar o nosso tradicional ciclomotor. Hoje há uma opção pela scooter: é um veículo que se ajusta à cidade, é um veículo que se ajusta a muitas situações, mais do que poderíamos ter pensado...."

 

 

Os truques dos Japs.

 

M.J- Contudo, a scooter continua a ser um veículo pouco adaptado às más estradas da realidade rural portuguesa. A agressividade comercial dos japoneses- apoiada em produtos actuais- também terá contribuído muito para a situação actual, em que tanto vemos scooters a "gemer" em estradas de lama como a "cantar" na cidade...

J.M.M. - Nesse ponto há um outro aspecto: a velocidade. As marcas japonesas rapidamente inflitraram no mercado português um outro tipo de veículo, já na altura muito contestado pela Comunidade que não tem receptividade nenhuma a uma tal cilindrada maior que 49,9..,entre os 74 e 75 de cilindrada... Os japoneses idealizam modelos já ajustados a este intervalo, com cilindradas entre os 49,9 e os 125cc e lançam também o veículo de 74cc. Em Portugal não há um processo de homologação para este tipo de veículos, e com relativa facilidade eles entram, vão às cãmaras e inscrevem-se como tendo cinquenta centimetros cúbicos!

Quando no resto da europa a Comunidade começou a impor restrições a este tipo de veículos- eles foram rejeitados pela Italia, pela França, e enfim, por todos os seus bons mercados- Stocks enormes destes veículos ficam armazenados em Espanha, sem terem possibilidades de serem comercializados. Portugal foi a escapatória: foi com relativa facilidade que estes veículos, sem hipótese de serem homologados como cilomotores em qualquer outro país, incluindo Espanha, entram no mercado Português. E porquê? Ainda hoje continuamos sem defesas: com a mesma legislação, fiscalização, esses veículos continuam a entrar por aqui dentro... Isto é um bocado selva, não é?

Temos um país com um custo de mão de obra relativamente baixo, mas nunca poderemos competir com práticas de "dumping"! Claro que quando hoje falamos de "dumping" é preciso ter muito cuidado, porque é extremamente dificil de provar- mas sabemos que existe esse "dumping"! Hoje na comunidade europeia já estamos a contestá-lo, já estamos a reagir e a identificar esse problema."

M.J- Mas os japoneses também não estão parados, e até já produzem veículos com mão de obra europeia, em fábricas cá construídas!

J.M.M.- "Os problemas só se agravaram quando a Honda e a Yamaha conseguiram encontrar na Holanda, Espanha e Belgica terreno para os seus negócios: estes países deixaram-se seduzir pela ideia da criação de unidades industriais que dessem a sua contribuição em termos de emprego à economia nacional. Contudo, e em especial em Espanha, eles foram pura e simplesmente induzidos em erro: eles não chegam a produzir os veículos em nenhum destes países e transformaram o projecto de fábrica em linha de montagem.

O veículo passa a ser europeu! Eles começam por afirmar que a indústria de acessórios desse país não está em condições de fornecer os componentes, e pedem autorização para  trazerem a essas linhas de montagem todos os seus componentes de origem. Espanha deixou morrer a sua indústria praticamente na totalidade por causa destas práticas nipónicas.

Quanto a nós por cá esquecemo-nos de uma coisa: legislar estas situações, coisa que toda a europa começou imediatamente a fazer, de modo a só importar os veículos que incorporem um minimo de oitenta por cento de matariais europeus. Isto tornou-se numa autêntica república das bananas com estes veículos ditos europeus?!..."

M.J - A comunidade europeia também tem "culpas no cartório" nessa questão. Nada nos diz que situações dessas não se repetirão de futuro, ou não?

J.M.M. - "Sem dúvida, no entanto, temos agora uma nova configuração europeia, que já está a dar os seus frutos: no fundo, começamos a construir um quadro legislativo adequado ás realidades especificas de cada país membro.

A ABIMOTA já era membro efectivo das três confederações de construtores europeus de motociclos e ciclomotores e apostou, também ela, na fusão das três numa única - isso foi possível a 12 de Janeiro, e da união nasceu a ACEM (Associação dos Construtores Europeus de Motociclos), formando assim uma única confederação, com obvios lucros na eficácia. Hoje, é a ACEM que está a criar toda uma estrutura de defesa da indústria europeia: um pouco tardiamente mas eficazmente. E acredite que a ABIMOTA está a contribuir o mais possível para que esta iniciativa vingue.

Nunca poderíamos competir sem defesas contra as práticas industriais de muitos produtores de componentes sediados em países sub-desenvolvidos. Encontram aqui uma mão de obra acessível, que produz este tipo de produtos na "soleira da porta", trabalha-se para sobreviver: em termos de ordenado, trabalha-se por um bocado de pão!"...

 

A scooter portuguesa.

 

M.J- A indústria portuguesa perdeu muito, mas será que ainda poderá alcançar uma posição confortável no mercado nacional, por exemplo através da produção de scooters.?

J.M.M.- "Perdemos de facto uma importante franja do nosso mercado. No entanto, há aqui um aspecto a ter em conta: a scooter foi importada mais com objectivos comerciais do que propriamente a ser um veículo que tivesse um projecto de assistência. Isto foi tão rápido que cada um procurou as suas marcas. E que marcas, que abundância de marcas é essa? Taiwan, por exemplo, tem duas empresas que produzem quadros, mas entregam-nos a uma duzia que adoptaram motores diferentes. O resultado é que a scooter chega a Portugal e encosta com falta de assitência! Quando acontece um acidente mais forte, as reparações com peças originais chegam por vezes a atingir e mesmo superar o seu preço original! Tudo porque o seu representante em Portugal não teve preocupação de criar uma estrutura de assistência."

M.J.- Face a este quadro, porque é que as poucas scooters produzidas no nosso país não conquistam uma posição de relevo entre marcas mais vendidas?

J.M.M.- "A scooter portuguesa surgiu com muito atraso. Paralelamente, são a Macal e a Famel que começam a produzir a scooter. Foram iniciativas muito boas, mas tardias. Se a Macal tivesse tido esta ideia meia duzia de anos antes, quando eles tinham o mercado português e a sua rede de comercialização na mão, nunca teriam deixado o nosso sector do ciclomotor ter sido tão afectado. Eu mesmo já os tinha despertado para o lado lucrativo desta iniciativa, bem antes de decidirem, mas claro: estamos perante o eterno problema da falta de preparação. A mentalidade empresarial em Portugal atrasou-se de tal modo que, quando começámos a falar em formação profissional, foi como colocar o carro à frente dos bois- essa formação deveria ter sido dirigida em primeiro lugar à entidade patronal, ao dito industrial... Tem sido uma luta titânica face a toda esta conjuntura - fui e sou um lutador de mentalidades..."

 

J.M.Marques e o ministro da indústria Mira Amaral: uma dupla inseparável onde o primeiro tem as ideias, e o segundo as apoia.

 

Planeamento, precisa-se.

 

M.J.- Olhando para o passado, constata-se que esta "crise" não é recente, e já vinha a revelar-se bem desde os anos setenta. Entretanto, a indústria de Águeda já tem beneficiado de alguns "balões de oxigénio", e a realidade não se tem alterado assim tanto...

J.M.M. Agora já temos objectivos bem definidos. Em 1982 a ABIMOTA requereu uma audiência com o Ministro da Indústria e definiu-lhes a situação do mercado português. No seu seguimento, declara o sector em reestruturação e nomeia uma comissão cosntituida pela Direcção Geral da Indústria, Direcção do Comercio Externo e Direcção Geral de Viação. Essa comissão começa por visitar várias empresas, apercebe-se da sua estrutura, e terminou todo esse trabalho no passado dia 24 de Fevereiro (1994) com a apresentação de uma proposta ao secretário de estado da administração interna. A indústria já dispõe de fundos e conselhos sobre como investir para a melhoria e rentabilidade dos seus produtos. É um trabalho que está bem enquadrado no novo código, que irá ditar o futuro das nossas estradas, logo, do nosso mercado.

Estruturalmente, nós dispomos hoje de cinco empresas que se dedicam ao fabrico de veículos motorizados: refiro-me à Famel, á Macal, à SIS, à Casal e à Fundador. Estas empresas teriam que criar uma estrutura deste tipo: não se fundirem, mas criarem entre elas aquilo que se pudesse chamar de uma linha de montagem. Todas elas seriam produtoras de um ou outro componente para essa linha de montagem, e para essa linha existiria uma central capaz de montar o veículo, com um gabinete comercial dinâmico e capaz de fazer prospecções de mercado, de recomendar o tipo de design, etc... Controlo de qualidade, design e marketing são três armas indispensáveis, e que só assim são possíveis de serem alcançados pelas pequenas e médias empresas que compõe o nosso tecido industrial. Quando fiz uma viagem pelos países asiáticos produtores de ciclomotores, constatei ser assim que funcionam, sempre com as linhas de montagem centrais."

M.J.- E quanto à capacidade tecnológica? Será possível competirmos neste capítulo com indústrias tão "robotizadas" como as italianas, por exemplo?

J.M.M. - "Ora bem! A qualidade portuguesa é avaliada pelos próprios mercados europeus, que têm na mais alta consideração a mão de obra portuguesa, uma mão de obra que só não evolui dentro do nosso país por falta de estruturas de apoio. Temos aqui o exemplo de Italia: a Malagutti e a Piaggio, que são por excelência dois bons construtores europeus de ciclomotores, acreditaram de tal ordem na qualidade portuguesa que a estrutura para a scooter da Malagutti está a ser produzida em Portugal. Quando uma empresa coloca um elemento tão vital para a segurança do seu veículo nas mãos de uma empresa portuguesa, é porque acredita na sua qualidade. A nossa indústria já tem a tecnologia, se bem que a um nível que nunca foi atingido em Portugal, mas sim imposta: ao exportarmos veículos para uma Alemanha, por exemplo, é claro que o produto tinha de ser homologado de acordo com as exigências deste país. O facto do veículo ter que ser peritado num laboratório estrangeiro obrigou a um esforço muito grande de aperfeiçoamento do nosso controlo de qualidade, só possível com um grande investimento tecnológico. Quanto aos anos que se aproximam, eles não serão nada faceis é verdade, mas com um bocadinho de protecção tudo se superará. A indústria nacional das duas rodas vai ser objecto de um programa PEDIP com fundos comunitários para reestruturar as suas empresas, e aqui o novo laboratório da ABIMOTA vai ter uma palavra fundamental na aplicação tecnológica deste investimento."

M.J.- O novo Laboratório de Ensaios da ABIMOTA passa assim a desempenhar também uma atitude de "pressão", não?

J.M.M.- "Sem dúvida. Porque é que a ABIMOTA chamou a si esse projecto? Precisamente para que, graças a todo um equipamento "de ponta" que já adquirimos, possamos estar em condições não só de homologar de acordo com as normas europeias, mas também para aconselhar de perto as fábricas. Depois da Direcção Geral de Viação transformar o Laboratório da ABIMOTA na entidade credenciada para fazer a homologação e certificação dos veículos nacionais e estrangeiros, tudo se modificará.

Estamos finalmente em condições de efectuar o controlo de qualidade desde a matéria prima até ao produto final, o veículo. A partir do momento em que este laboratório começa a funcionar, ninguém mais se poderá considerar como industrial se não cumprir os mínimos de qualidade impostos pelas normas europeias.

Ao mesmo tempo, o laboratório será também um escudo a práticas duvidosas de marcas estrangeiras. Imagine por exemplo que chega aqui um veículo com 74cc; nós vamos efectivamente tratar esse veículo de modo a poder ser homologado com uma boa segurança e fiabilidade. Se o fizéssemos agora, e de acordo com as normas comunitárias, asseguro-lhe que grande parte dos veículos tidos como ciclomotores a circular em Portugal não passariam. Só com o início da actividade do nosso laboratório a par com a nova legislação teremos alguma protecção a este tipo de práticas. Com o novo Código da Estrada, o nosso parque passará a estar dividido de acordo com uma lei que reconhece e protege a produção nacional, enquadrando-a na classe A1. Ao fazer pela primeira vez a diferença entre estes veículos e os ciclomotores, a DGV vai começar a emitir ela mesma os livretes dos veículos que produzimos, e como tal vai exigir mudanças. A nossa indústria terá aqui mais uma "pressão" no bom sentido pois quando os meninos não puderem andar a mais de 45km\h com os ciclomotores, eles virar-se-ão para a classe A1, e estes veículos terão de possuir uma boa segurança. Isto vai sofrer uma grande transformação."

 

O laboratório do futuro.

 

O laboratório de Ensaios da ABIMOTA recentemente inaugurado pode bem vir a ser a diferença entre uma indústria saudável, ou falida. Construido e equipado com o apoio dos fundos comunitários (PEDIP) na Borralha, perto de Águeda, irá no futuro ensaiar todos os produtos da indústria nacional das duas rodas com vista à sua homologação e certificação. No fundo, a sua função será a de acompanhar os empresários portugueses com um só objectivo, como José Maria Marques definiu no descurso inaugural: "a obtenção da qualidade total!".

Apesar do seu enquadramento "institucional" não estar ainda consagrado na lei portuguesa, o seu principal promotor ( J.M. Marques) não esconde as ambições da sua ideia: ao mesmo tempo que investiga e auxilia os nosso fabricantes na procura de soluções técnicas, o Laboratótio de Ensaios terá capacidade para conceder homologações e.. certificações. Ou seja, também verificará as homologações dos países de origem das motos importadas.

Para desempenhar esta função, o laboratório está excepcionalmente bem equipado, e possui já técnicos com formação á altura. De facto, as suas instalações podem já considerar-se uma excepção no actual panorama nacional do apoio da indústria: desde um espectómetro a uma máquina de medição tridimensional, passando por sondas ultra-sons, tem de tudo para analisar e testar qualquer tipo de peça ou veículo de duas rodas. As secções em que se organiza dizem bem das suas capacidades: o moderno edificio divide-se entre Laboratórios de Ensaios Quimicos, de Materiais, de Superficies, de Metalurgia, de Metrologia Dimensional, de Motores e Veículos, etc.

Mas se as capacidades desta nova instituição são inegáveis, a sua viabilidade é ainda uma dúvida. Uma vez que a actual politica governamental aposta nos projectos capazes de se auto- financiarem, ao Laboratório da Abimota resta ainda uma ingrata tarefa: encontrar maneira de sobreviver, procurando receitas numa área onde os nossos industriais raramente apostam - na Investigação e Desenvolvimento de novos produtos. Mais uma vez, tudo dependerá da capacidade de iniciativa dos nossos industriais, pois... Se as nossas fábricas não produzirem nada de novo, nada haverá para testar e homologar!